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O sentimento racista que causa repulsa do indivíduo branco para com o indivíduo negro e que faz com que por mais que você ame aquele seu grande amigo ou seu par amoroso, parente, etc. haja uma barreira entre vocês que só a pessoa negra sente, deve ser detectado e combatido com muita decisão, porque é ele que exclui e segrega em um nível que acaba por se tornar decisivo nas relações sociais. E é tão naturalizado que a pessoa branca não pensa a respeito de quantas vezes é capaz de agir com racismo mesmo com aqueles a quem estima.

Joice Berth (2016)

Muito embora nos últimos anos as discussões sobre discriminação racial venham ganhando alguma visibilidade significativa, ainda pouco se fala sobre questões encaradas como “micro” violências (que deixam marcas tão profundas quanto as macro violências), como por exemplo a solidão da mulher preta ou a hiperssexualização de corpos pretos ou racializados.

Angela Davis (1981) observa que:

Uma das características históricas marcantes do racismo sempre foi a concepção de que os homens brancos – especialmente aqueles com poder econômico – possuiriam um direito incontestável de acesso ao corpo das mulheres negras. A escravidão se sustentava tanto na rotina do abuso sexual quanto no tronco e no açoite.

bell hooks (1994) afirma o mesmo:

Mais que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade, as negras têm sido consideradas ‘só corpo, sem mente’. (…) a cultura branca teve que produzir uma iconografia de corpos de negras que insistia em representá-las como altamente dotadas de sexo, a perfeita encarnação de um erotismo primitivo e desenfreado.

E enquanto pouco se fala a respeito dessas pautas que abordam as vivências específicas de mulheres pretas, menos ainda se fala a respeito dessa solidão e hiperssexualização quando ela é voltada para corpos dissidentes, corpos que fogem da normatividade mesmo entre seus próprios grupos étnicos, como os da comunidade LGBTQIA+, especialmente no caso das pessoas transgênero e travestis. Fomos moldados para acreditar que nossos corpos não são corpos dignos de ser amados, no máximo desejados em segredo. Para vários de nós, o amor – seja ele vindo do outro ou mesmo nosso amor próprio – ainda é considerado um luxo.

A prática de reprimir os sentimentos como estratégia de sobrevivência continuou a ser um aspecto da vida dos negros, mesmo depois da escravidão. No decorrer dos anos, a habilidade de esconder os sentimentos passou a ser considerada como sinal de uma personalidade forte. (…) Muitos negros, e especialmente as mulheres negras, se acostumaram a não ser amados e a se proteger da dor que isso causa, agindo como se somente as pessoas brancas ou outros ingênuos esperassem receber amor.

 (hooks, 1995)

Se os padrões brancos-europeus violentam, discriminam, invisibilizam e matam corpos pretos, indígenas e racializados em geral todos os dias, a situação se torna ainda mais grava quando se trata de corpos que também fogem à cis-hétero normatividade. Mais do que como subalternos, esses corpos ainda são vistos como “aberrações” por grande parte da sociedade. A arte-educadora Helena Meireles, trans e preta, constatou numa entrevista para o jornal Brasil de Fato (2020):

Nós vivemos sob um status de subalternidade, somos o corpo coisificado, o corpo fetiche, e, ao mesmo tempo, aquele corpo que é agredido à luz do dia, aquele corpo que é invisibilizado. (…) o corpo de uma mulher trans para grande parte da sociedade (…) é ao mesmo tempo depósito do fetiche, do gozo, do prazer, e logo depois ele tem que ser apagado porque não pode se tornar o espelho, o reflexo desse ato. Isso faz com que tenhamos essas situações de violência macabras.

Essas “violências macabras” não resumem apenas a agressões cometidas por desconhecidos nas ruas. Elas também acontecem, principalmente, em forma de violência doméstica – seja ela psicológica, patrimonial, física ou sexual -, em forma de negligência e abandono familiar, rejeição, privação do afeto e solidão. Essa solidão adoece e, muitas vezes, leva mulheres pretas (e pessoas trans* e racializadas) se sujeitarem a relações de abusos e se prender em ciclos de violência.

O extermínio dessa comunidade é institucionalizado, causado pelo desamparo e falta de proteção do Estado, falta de acesso ao mercado de trabalho e à saúde, a falta de moradia e oportunidades e muitas vezes também pelo suicídio dos que acabam se deparando com o desespero de não conseguirem projetar uma perspectiva de vida para si.

Em um texto escrito por Maria Clara Araújo, intitulado “A solidão da mulher trans negra” (2015) para o site Blogueiras Negras, ela explica alguns motivos que causam essa solidão afetiva:

Entendendo a transfobia que está fincada na raiz da cultura brasileira, vir a ter qualquer tipo de envolvimento conosco, é motivo suficiente para um homem ser ridicularizado publicamente, assim como o Ronaldo Fenômeno foi e ainda é. Criou-­se a concepção de que mulheres trans e travestis não são mulheres e, por conta disso, um homem hétero que viria a se relacionar conosco, poderia ter sua “masculinidade” questionada. (…) Então, quem se relaciona conosco se vê frente a situações vexatórias porque está com um traveco (sic). O que leva a grande maioria desses rapazes a apenas cogitarem duas possibilidades: sexo casual ou relacionamentos às escondidas. É comum que nos deparemos com convites deliberados para realizar os fetiches de certos homens ou receber a proposta de um relacionamento dito como sério, mas que se resume a algo que fica apenas entre os dois envolvidos.

Por mais que as citações referenciadas acima abordem especificamente a vivência de mulheres trans, travestis e cis, essa discussão ainda pode se estender a homens trans, pessoas trans não binárias e até mesmo lésbicas butch (de expressão de gênero “masculinizada”) e homens gays afeminados – enfim, a cada um dos corpos que destoam das normas estéticas e comportamentais estabelecidas pela branquitude cisgênera e heterossexual.

Nas vidas de muitos de nós, amar, ser amado e até mesmo permitir-se se amar ainda é um privilégio que batalhamos muito para alcançar. A falta de afeto ainda nos segrega, adoece, agride e mata. E o remédio para isso, ainda que caminhemos devagar nessa direção, não é outro se não procurar esse afeto, esse amor entre nossos semelhantes. Principalmente porque amar nossos iguais é um enorme passo na jornada para aprender o amor próprio. Esse amor é capaz de curar e fortalecer nossas mentes, corpos e espíritos.

Por fim, quanto à relação entre o amor e as mulheres pretas (que, aqui nesse texto, iremos tratar como uma referência a todas as pessoas pretas/racializadas/dissidentes), bell hooks (1994) afirma:

O amor precisa estar presente na vida de todas as mulheres negras, em todas as nossas casas. É a falta de amor que tem criado tantas dificuldades em nossas vidas, na garantia da nossa sobrevivência. Quando nos amamos, desejamos viver plenamente.

Referências:

“Nós somos o corpo coisificado, o corpo fetiche”

Mulheres, Raça e Classe – Angela Davis